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sexta-feira, 13 de maio de 2016

O mundo assombrado pelos demônios e o ensino da ciência

Já tinha ouvido falar bastante sobre esse livro. Queria ler mas estava um pouco difícil de achar nas livrarias. Toda vez que ia em alguma eu procurava feito um louco na esperança de achar. Os livros de bolso da Companhia das letras até nem são difíceis de encontrar numa livraria. Geralmente eles tem uma estante própria, o que não acontece com os demais livros sobre ciência. A maioria das livrarias -- pelo menos as que conheço, com exceção de uma -- não possuem uma sessão específica para livros de ciência, eles geralmente ficam espalhados pela loja.



Enfim, finalmente achei o livro e comecei a ler. Logo na introdução é possível perceber a delicadeza na escrita de Carl Sagan. Como ele fala da ciência de um modo apaixonado e como tenta de modo delicado apresentar às pessoas argumentos que a façam refletir sobre questões como o misticismo, as teorias da conspiração, a astrologia, espaçonaves alienígenas que cruzam o céu, a necessidade do conhecimento público da ciência, sua má utilização -- como no caso de Hiroshima e Nagasaki -- e até  sobre questões políticas. 


Durante todo o livro Sagan propõe o pensamento cético, e não só para a ciência. Em uma passagem, ele mostra como somos céticos para umas coisas e crédulos para outras. Um dos exemplos do ceticismo diário ocorre na compra de carros usados. Ora, quando compramos um carro levantamos inúmeras questões e duvidas. Queremos saber a procedência, como ele foi usado, verificar o estado dos componentes mecânicos -- as vezes até chamamos alguém que entende mais do assunto para dar uma olhada. Conferimos a quilometragem e até indagamos se ela não foi adulterada. verificamos o estado da pintura, do estofado dos bancos, se o ar-condicionado funciona, se as luzes ascendem. Se não realizarmos essa avaliação cética podemos ser facilmente enganados pelo vendedor que poderá nos vender um carro cheio de problemas. Se somos céticos quando compramos carros, por exemplo, por que não somos também céticos com relação às religiões e crenças? 


Poderia passar o dia falando sobre o conteúdo do livro, mas não quero dar spoilers. É um livro de leitura obrigatória  para qualquer pessoa que tenha interesse pela ciência e também para pessoas que a querem entender melhor. 

O "kit de detecção de mentiras" proposto no livro é sensacional. É basicamente um detector de falácias de alta utilidade pública. Sabe quando você está no meio de um debate e a pessoa começa a manipular evidências e argumentos seus contra você mesmo? Esse "kit" ajuda a identificar quando as falácias acontecem. Vou fazer uma postagem explicando o kit. Considero a ideia como de utilidade pública. 

Carl Sagan era astrônomo e divulgador científico -- um dos maiores, aliás. Para ele a ciência não pode ser escondida do conhecimento da população. As pessoas devem fazer parte do processo científico. Uma das ideias que ele critica no livro é a divulgação apenas dos produtos da ciência, sem demonstrar o processo pelo qual se chegou a determinada descoberta. E esse processo é justamente a parte interessante e emocionante. Como os cientistas fizeram pra chegar a tal conclusão? Eles já tinham em mente o que queriam obter ou o resultado veio ao acaso? Falharam em algum momento? Fizeram testes? Como foram esses testes? 

Uma das frases mais célebres de Sagan no livro, e que agora carrego com apreço em minha mente, é:
"A ciência é muito mais uma maneira de pensar do que um corpo de conhecimento."
Se ensinamos apenas os produtos da ciência à população, como ensinar que a evolução apenas existe, sem explicar como se chegou a essa ideia, quais as evidências e tudo mais, estaremos pedindo que as pessoas apenas acreditem no que dizemos, suprimindo o ceticismo e instigando as pessoas a confundirem a ciência da pseudociência. Essa é uma das coisas da qual mais me queixo sobre o ensino da ciência nas escolas, principalmente durante o ensino médio. As aulas são tão rápidas e o conteúdo distribuído de tal maneira que fica difícil estudar o processo científico de cada assunto junto com seu produto.

Essa realidade é muito evidente na matemática. Quantas vezes os professores deixavam de mostrar a dedução das fórmulas por falta de tempo. Esse talvez seja um dos motivos pelo qual as pessoas acham a matemática chata. Decorando fórmulas sem entender o processo que levou a elas, eu também acharia entediante. Justamente por isso sempre busquei as explicações. Frequentemente pedia aos professores para deduzirem as fórmulas após as aulas. Certo que algumas equações necessitam de um pouco de matemática avançada para serem deduzidas, mas uma grande maioria pode ser demonstrada com a própria matemática que se ensina nas escolas. E outra coisa, porque não ensinar pelo menos um pouco da matemática avançada nas escolas? Como noções de limite e derivada. Seria chato e entendiante? Realmente, se o ensino continuar sendo baseado em lançar fórmulas e mandar os alunos decorar... será mesmo. Mas e a história das deduções? Claro! As histórias. Equações não foram formuladas sozinhas, alguém as propôs. Quem foi? Como fez? Quando fez? Foi fácil chegar à resposta? Essa pessoa encontrou obstáculos no caminho? 

As histórias ajudam no aprendizado. Elas promovem a criação de um elo emocional entre o aluno e o assunto. Por exemplo: Até hoje me lembro de quando o professor falou sobre a história de Arquimedes e a coroa de Herão, o rei de Siracusa, onde este pede a Arquimedes que verifique se sua nova coroa é realmente de ouro puro. Arquimedes começa a diferenciar maneiras de testar a pureza da coroa. Até que um belo dia, enquanto tomava banho, ele subitamente pula fora da banheira e sai correndo pelado pelas ruas da cidade gritando "Eureka! Eureka!". Arquimedes acabara de elaborar o princípio de Arquimedes, em que uma força chamada de empuxo atua sobre corpos imersos em fluídos. Ele percebeu que o volume de água que transbordava de sua banheira quando nela entrava era igual ao volume de seu próprio corpo. Com isso ele notou que objetos com mesma massa poderiam deslocar quantidades diferentes de água da banheira, pois seus volumes são diferentes. Como a densidade é uma propriedade da matéria, corpos de mesmos materiais possuem a mesma densidade. Assim, um bloco de ouro puro com a mesma massa da coroa, supostamente de ouro puro também, deveria deslocar a mesma quantidade de água da banheira. Após o experimento Arquimedes constatou que o volume transbordado pela coroa era maior que o do bloco, para a infelicidade do rei...

Nesse caso a história é na verdade uma estória, uma lenda. Mas só lendas devem ser contadas? Só lendas são legais? Não, as histórias reais de descobertas também são. Por exemplo a saga de Marie Curie, que merece uma postagem exclusiva.

Na biologia também acontece essa supressão do processo de descoberta. Aprendemos que Watson e Crick descobriram a estrutura do DNA, mas... como eles conseguiram? E o pior é que até hoje não fui atrás dessa informação. Sei muito pouco do processo, vou até pesquisar como eles fizeram. Os Alunos aceitam que o DNA é helicoidal, mas nem se perguntam como isso foi verificado. O ensino da ciência nas escolas desestimula o ceticismo e a curiosidade. Ensina-se mastigado, não há estímulos para os alunos irem buscar respostas para essas questões. Nesse meio, ocorre a tragédia. Se a ciência é apenas mais uma crença -- na visão dessas pessoas que aprenderam apenas os produtos --, qual a diferença dela para a pseudociência? Infelizmente boa parte do processo de analfabetismo científico começa nas próprias escolas -- salvo algumas exceções, claro.

Um dos capítulos mais interessantes é o 14 "A Anticiência", em que Sagan fala sobre a falibilidade humana e como a ciência é estruturada de modo a suprimir essas falhas. O método científico obriga os cientistas a desafiarem suas próprias expectativas e crenças, a realizarem uma autocrítica e testarem suas ideias.

Enfim, o livro é fantástico e merece ser lido com calma e apreciação. Ele também traz algumas cartas de leitores respondendo algumas de suas matérias em revistas anteriores à publicação do livro. E muitas dessas cartas são bem assustadoras, outras, engraçadas. Foi o primeiro livro de Sagan que li e com certeza vou ler outros.


Fontes:
Arquimedes e a coroa: Link


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